quarta-feira, 4 de junho de 2014

Qualquer sistema de valores é igualmente válido?

Quando grande parte da população americana se revoltou com a proposta de construção de um mosque e centro comunitário islâmico em Nova Iorque, a dois quarteirões de onde ficavam as torres do World Trade Center, esse foi um dos comentários do então prefeito Michael Bloomberg:
É minha esperança que o mosque ajude a trazer os habitantes de nossa cidade ainda mais próximos e repudiar a falsa e repugnante ideia de que os ataques do 11 de setembro foram de alguma forma consistentes com o Islã.
Falsa ideia? Como mostram outros episódios como a publicação de The Satanic Verses por Salman Rushdie e das charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, a tensão entre o mundo secular ocidental e o islâmico tem sido uma constante há algumas décadas e não há parece haver previsão para mudanças. Quando observamos a reação a escândalos do tipo, encontramos sempre um grupo políticamente correto, defensor do multiculturalismo, que se abstem de críticas acusando-as de racistas, xenofóbicas, etc, e um backlash reacionário de extrema direita que exagera nas generalizações e prega atitudes radicais, como bem ilustra o caso de Breivik na Noruega. No meio intelectual e acadêmico, não acho que seria exagero dizer que ninguém apóia tais atitudes extremistas e violentas. Mas será que a única alternativa aceitável é se calar e fingir que não existe um problema?


Relativismo moral

Tudo é relativo. Não temos nenhuma certeza absoluta. Nem sabemos se o universo existe concretamente ou se é só uma ilusão da nossa própria consciência. Como dizem os solipsistas, a única coisa em cuja realidade podemos ter alguma confiança é nossa experiência subjetiva. Como consequência, qualquer tentativa de justificar alguma afirmação também se baseia em crenças pessoais, como bradam os pós-modernistas defensores do relativismo epistêmico. Porém, por razões práticas, adotamos uma atitude pragmatista e tomamos uma série de coisas como verdades absolutas. Supomos, por exemplo, que o universo existe e que outras pessoas também são seres vivos conscientes e com sentimentos e não programas da Matrix. Mas até que ponto é válido tratar certas coisas como verdade absoluta? Onde desenhar a linha que separa a simplificação necessária e legítima da arrogante e parcial?

Afirmações objetivas

O que é maior, um elefante ou uma formiga? Essa é uma comparação normalmente entendida como objetiva. Podemos concordar que diz respeito a uma propriedade absoluta do universo e não traz em si nenhum tipo de juízo de valor. É objetivo. Não depende da opinião de ninguém, desde de que haja consenso com relação à definição das palavras "elefante", "formiga", "maior" e ao funcionamento da gramática da língua. Não depende da experiência subjetiva das pessoas que avaliam a frase. O elefante é maior e pronto. Quem discordar é louco.

Afirmações subjetivas

Batata frita é melhor do que chocolate. Essa já é uma afirmação subjetiva. Não é algo discutível e dificilmente se pode tirar alguma conclusão construtiva de um debate acerca dessa afirmação. Depende da experiência subjetiva do degustador e se ele prefere batata frita não existe nenhuma base sobre a qual se possa construir argumentos que refutem sua preferência. Para todo efeito prático, a frase equivale perfeitamente a "Eu gosto mais de batata frita do que de chocolate".

Do subjetivo ao semi-absoluto

Como falei no início do texto, se formos filosoficamente rigorosos, tudo é relativo. Então como eu posso dizer, logo depois, que uma formiga ser menor do que um elefante é uma propriedade "absoluta" do universo? Pois é, esse é o primeiro argumento crítico desse texto: eu não posso. Mas com todo esse rigor filosófico, simplesmente não podemos nos comunicar inteligivelmente. Na prática, "objetivo" e "subjetivo" não são como "preto" e "branco". Existem infinitos tons de cinza, e para podermos viver em sociedade de forma cooperativa precisamos concordar com certas premissas, pelo menos as "mais escuras" (i.e. mais aceitas), e tratá-las como suficientemente objetivas para todos os efeitos práticos. Da mesma forma que aceitamos que o universo existe concretamente e que não estamos na Matrix, peço também que, para os fins dessa conversa, concordemos com certas convenções a respeito de nossa linguagem (definição de "elefante", "formiga", "maior" etc). Uma vez que concordamos com essas convenções, então sim, podemos fazer algumas afirmações (semi-) objetivas.

Ok, ótimo. Conseguimos concordar que um elefante é maior que uma formiga, e que embora isso não seja garantido com um rigor filosófico infinito, na prática simplifica a nossa vida considerar que este é um fato objetivo. Mas isso é meio óbvio não? Esse é um acordo implícito que todas as pessoas meio que automaticamente aceitam por razões práticas sempre que usam uma língua para se comunicar. Mas não é só quando se trata de assuntos claros e consensuais que as pessoas usam essas comparações absolutas. As pessoas usam absolutos o tempo todo. É como se o ser humano tivesse uma necessidade psicológica instintiva de estar sempre mais certo do que os outros, mesmo quando o assunto é chocolate e batata frita. Também é uma questão histórica. Nossa língua inevitavelmente carrega um legado cultural, e paradigmas segundo os quais o ser humano não está no centro do universo, ou em que não há um Deus para legitimar os valores humanos de forma absoluta, são historicamente recentes. Só que hoje em dia é tudo muito diferente, e embora nas ciências exatas ainda seja pouco controverso fazer certas aproximações, quando nos voltamos para questões de estética e moralidade, falar em absolutos se torna muito mais delicado.

Estética

Uma propriedade interessante em opiniões a respeito de estética é que elas tendem a rapidamente se tornar "irredutíveis", no sentido de que é difícil encontrar premissas universalmente aceitas que justifiquem uma dada opinião. Podem falar que batata frita é quentinha e crocante mas se uma criança perguntar "e por que você prefere isso?" ad infinitum, logo a pessoa vai ter que desistir e dizer "ok, eu não sei, eu simplesmente gosto mais de uma coisa do que da outra, não sei por quê" (ver regress argument). É como se questões de estética estivessem em um tom de cinza bem claro. Ainda assim a sociedade humana nos dá inúmeros exemplos de convenções criadas de forma a permitir julgar certas propriedades em termos "absolutos" (ou menos subjetivos): o conceito de crítico especializado de música, cinema, teatro, de júri em concursos de Miss ou outros shows de talento, o sistema de avaliação de hotéis baseado em estrelas da Forbes, todos são tentativas de avaliar propriedades estéticas de uma forma semi-absoluta ao invés de simplesmente considerá-las uma pura questão de gosto. Mas como tornar o subjetivo mais objetivo?

Normalmente críticos são pessoas com experiência em sua área de atuação, grandes conhecedores de música, culinária, teatro ou o que quer que seja. Mas confiar cegamente em um crítico parte da premissa de que, se você tivesse o mesmo conhecimento de, digamos, culinária que o crítico, provavelmente avaliaria os pratos de forma igual. Ora, de fato o trabalho de um crítico tem espaço na sociedade e muitos valorizam suas avaliações. É claro, em algum nível de fato os indivíduos da espécie humana são parecidos o suficiente para que a avaliação de um restaurante feita por  alguém que se dedica a isso tenha alguma relevância para outros seres humanos. Mas diferente do elefante e da formiga, ainda há bastante espaço para discordância. Tanto que há diferentes críticos, em diferentes culturas, que fazem diferentes avaliações e agradam diferentes leitores.

No caso do júri, além da suposta autoridade do crítico especializado, há ainda outro grau de "absolutização": o número de pessoas avaliando. Isso seria uma forma de levar em conta a variedade de opiniões encontradas em uma dada amostra da população. Não é mais apenas um crítico especializado, são vários. Se todos dão uma avaliação positiva a uma certa cantora do Ídolos, será que isso não quer dizer alguma coisa a um nível mais do que o subjetivo? Bom, em um nível filosófico não. Mas em um nível prático é isso que eles estão tentando fazer. Desenvolver um mecanismo de avaliação que seja dentro do possível neutro e objetivo. Eu em particular dificilmente me identifico com o júri do Ídolos, mas para o público que eles procuram atingir imagino que sua opinião seja relevante. Hoje em dia, com a internet, outro sistema de avaliação comum é o baseado em votos de usuários, como no IMDB. Em todo caso, por mais que o trabalho de críticos e júris especializados seja relevante, e por mais dignos de admiração que sejam os grandes músicos, atores ou chefs, o valor atribuído a sua obra não deixa de ser subjetivo.

Não importa o quanto se racionalize, não há como encontrar uma forma convincente o suficiente de se julgar questões estéticas de forma objetiva, e na maioria dos casos nem vejo por que seria importante encontrar uma. No máximo pode nascer um louco que gosta muito de se alimentar de fezes. Este será tratado como algum tipo de doente, mas mesmo assim, podemos dizer que ele está "errado" em gostar mais de cocô do que batata frita? Ele desvia de um padrão e isso pode ter consequências ruins para sua saúde. Mas, se ele prefere, então para ele é melhor. Levando tudo isso em conta, portanto, não vejo razões para considerar questões estéticas como algo além de questões fundamentalmente subjetivas. Mas e com questões que vão além da estética? Será que é importante encontrar uma forma objetiva de avaliá-las? Será que é importante concordarmos?

Moral

Quando o assunto é mais polêmico e trata de questões morais, a situação é mais complicada. Não se trata mais de prazer e entretenimento, mas de justiça, bem-estar, direitos, obrigações etc. No caso de questões morais, talvez por sua natureza mais profunda, delicada e pela seriedade de suas implicações, as pessoas tendem a ser mais relutantes em simplesmente dizer "eu acho isso errado e pronto, não sei por quê e nem preciso saber". É mais difícil aceitarmos que questões morais são puramente subjetivas. Mas o que fazer ao perguntarem por que algo é "errado"? Como já mencionei no texto "Seria o racionalismo um sistema de crenças?", a solução mais prática para o problema da regressão infinita de argumentos é simplesmente partir de algum ponto comum. Uma base com a qual todos concordam. E é exatamente o que as pessoas costumam fazer, consciente ou inconscientemente, quando falam sobre moral.

O lema dos anti-aborto ilustra bem isso: "Aborto é assassinato!". Ora, assassinato é algo universalmente abominado. Se aborto é assassinado, logo, aborto também é abominável. Mas por que assassinato é errado? Ora, ninguém quer morrer. Lutar pela vida é assustador, morrer é doloroso, triste, vão sentir minha falta, meus entes queridos vão sofrer etc, etc. Mas e daí? Ora, sofrimento é ruim, é horrível. Ainda mais o sofrimento da morte ou da perda de alguém que se ama. Sofrimento é ruim e pronto, essa é a definição. Se faz sentido dizer que algo é "errado" é porque esse algo causa sofrimento em um grau que vai além do tolerável e justificável.

Utilitarismo

Essa é a linha de raciocínio do utilitarismo. Quanto mais uma ação causa sofrimento e mal estar a criaturas sencientes, mais ela deve ser considerada errada (repare que a lógica que justifica que assassinato é errado não funciona tão bem para o aborto, afinal um feto de poucas semanas não sofre, de forma que o lema anti-aborto é quase um jogo de palavras). De fato, é difícil pensar em um princípio mais fundamental do que esse. Dentro desse sistema de pensamento, as palavras "certo" e "errado" têm um significado bem mais claro e específico. Não é mais algo tão subjetivo. Na verdade é difícil dizer se é realmente uma questão moral e filosófica ou simplesmente linguística. Afinal, o que mais "mal", "ruim", "imoral" poderiam significar? Negar essa definição e insistir em usar as palavras é quase como negar a definição de "elefante", "maior" e "formiga" e insistir que "Formigas são maiores do que elefantes".

Aceitando a definição, vemos que o difícil é estimar quanto sofrimento algo causa com uma precisão maior do que a de uma pessoa que simplesmente responde em um questionário o quanto ela está sofrendo e determinar como será feito o cálculo do mais certo ou mais errado levando em conta o número de pessoas e o sofrimento e prazer gerado para cada uma delas. Se você tem que escolher entre deixar quatro pessoas morrerem dormindo com tiros na cabeça ou uma morrer espancada e queimada lentamente, qual é a decisão certa?
Ninguém tem a menor ideia de como comparar a leve dor de cabeça de 5 milhões frente às pernas quebradas de dois, ou às necessidades das crianças de si próprio frente às de 100 crianças com danos cerebrais sem nenhuma ligação na Sérvia.
– Patricia Churchland
Muitas questões estão em jogo, de forma que não é fácil responder essas questões. Mas se concordarmos com os fundamentos do utilitarismo, podemos dizer que em princípio existe uma resposta, mesmo em casos que na prática seja inalcançável.

Quando é importante concordar?

Como já comentei, no geral não vejo muitas razões por que seria importante encontrar uma forma objetiva de avaliar que obra é superior a outra em um sentido puramente estético. Talvez qual é mais relevante em um certo contexto, mas isso merece uma sessão mais adiante. Já quando se trata de questões linguísticas (e.g. significado de "elefante", "maior", etc), ou fatos sobre a lógica e a natureza (como argumento melhor no texto sobre racionalismo), se torna necessário algum nível de concordância para podermos nos comunicar e viver em sociedade.

Mas e as questões morais, onde se enquadram? Eu vejo uma diferença crítica entre moral e estética. De fato, pensando com rigor, sempre pode haver alguém que não concorde nem que espancar uma pessoa e queimá-la lentamente seja de forma alguma errado. Essa pessoa pode não concordar que isso cause sofrimento, pode não acreditar nas palavras da vítima, pode achar que ela é um programa da Matrix, etc. Ou pode simplesmente achar que seu prazer ao torturar é tão grande que compensa o sofrimento da outra pessoa. No final, é sempre subjetivo.

Mas é difícil negar que "torturar é errado" e "batata frita é melhor do que chocolate" são afirmações de naturezas diferentes. A segunda é claramente subjetiva mas a primeira está em uma área mais cinza. E o segundo argumento crítico que defendo neste texto é que faz mais sentido tratá-las como objetivas do que subjetivas. Afinal, certas convenções (e.g. torturar inocentes é errado) são tão universais que é perfeitamente legítimo tratar certas questões morais como questões absolutas, abordando-as de forma exata e científica. É o que defende Sam Harris em seu livro "The Moral Landscape" (algo como "O Relevo Moral"). Afinal, se existe algum sistema moral neutro o suficiente, um conjunto de diretrizes que parte de princípios quase universais e através das regras da lógica nos ajuda a avaliar o que é mais certo ou errado de forma imparcial, esse sistema é o utilitarismo. E se alguém não concorda com alguma regra tão universal (novamente, e.g. torturar é errado), o problema pode até estar na subjetividade do que essa pessoa considera certo/errado em um nível fundamental, como poderia ser o caso de algum psicopata etc. Mas é muito mais provável que esteja no raciocínio que leva do princípio básico aos casos particulares, como no caso de um fanático religioso que mata seu filho homossexual pois acha que assim está fazendo um "bem maior", usando o exemplo do próprio Harris. O princípio do utilitarismo até foi respeitado. O erro foi em acreditar que o homossexualismo traria sofrimento, através de punição divina ou o que quer que seja, deturpando o resultado do cálculo.

Em TED Talk, Sam Harris fala sobre seu livro "The Moral Landscape". Nele, o autor argumenta que o mundo moral é como uma paisagem montanhosa, onde os picos do relevo representam alta prosperidade humana e os vales representam a ruína e o sofrimento. Harris salienta que sua visão não se opõe de forma alguma à diversidade cultural, uma vez que não há apenas um pico possível, mas vários. Isso não significa, porém, que não existam vales.
Convenções linguísticas

Quando falamos em uma língua, uma série de regras e convenções são aceitas implicitamente. Aceitamos que cadeira é um objeto onde se senta e que respeita algumas outras propriedades, que um triângulo é um polígono de três lados etc. Nem tudo, porém, é tão preto e branco. Algumas palavras são vagas, ambíguas, e dependendo do contexto cada um pode interpretá-las de forma diferente. Isso pode dar origem a todo tipo de desentendimento. Por isso acho importante aqui deixar claro em que sentido eu uso alguns termos. Quando uso termos como "bom, ruim, melhor, pior, baixo, alto" etc, em um contexto moral, estou adotando uma lógica utilitarista. Quando estou falando de estética, vou evitá-los pois, como já mencionei, acredito que questões estéticas se reduzem muito rápido a experiências subjetivas não tão universais. Portanto, se os virem ao longo do texto, há grande probabilidade de que eu os esteja usando em um sentido moral e não estético.

Opiniões objetivas e subjetivas

Essa é uma distinção que eu gosto de fazer e acredito ser útil nesse texto. Opiniões objetivas dizem respeito à realidade do universo enquanto as subjetivas não. "Acredito que não existe vida na Via Láctea (a não ser na Terra)" é uma opinião objetiva. Eu não sei se existe, mas acredito que não. Mesmo que as razões por trás da minha crença sejam subjetivas (e.g. "eu sinto dentro de mim que não existe vida"), a opinião ainda é objetiva porque o universo será um lugar diferente dependendo do valor de verdade da afirmação.

A opinião estética "Mozart é melhor do que Beethoven", porém, já é mais difícil de ser analisada objetivamente. É uma crença pessoal da pessoa que faz a afirmação e diz respeito somente à sua preferência. Não está ligada à realidade concreta do universo. Nenhuma descoberta sobre a natureza faria a pessoa mudar de opinião.

A crítica moral de obras estéticas

Recentemente escrevi um longo texto sobre o Funk Carioca. O estilo é um bom exemplo nesse texto porque acredito que, embora não exista tensão como muçulmanos no Brasil, o relativismo moral no país também tem sua forma de se manifestar, como fica evidente no contexto do funk e da população das favelas. No texto eu basicamente argumentava que meu desgosto pelo Funk não é apenas uma questão estética, e portanto subjetiva, mas uma questão moral, e portanto em algum grau uma opinião objetiva sobre a realidade do universo. Assim como eu acho que não existe vida na Via Láctea fora do planeta Terra, eu acho que alguns estilos do Funk trazem efeitos prejudiciais para a sociedade, em um sentido utilitarista. São portanto duas afirmações:

1. O Funk traz certos efeitos X para a sociedade.
2. X é moralmente ruim sob uma análise utilitarista (tende a colaborar para o mal-estar).

A afirmação (1) é bastante objetiva (como a afirmação sobre vida na Via Láctea). Eu posso estar certo ou errado mas a discussão continuará em aberto enquanto não forem feitos estudos científicos que verifiquem se de fato o Funk tem esses efeitos. No texto eu apresento uma série de argumentos que são suficientes para me convencer de que sim, tem. A afirmação (2) levanta uma questão moral ficando portanto em uma área cinza como mencionei. Mas uma área cinza que, como já defendi, para o bem da humanidade, deveria ser tratada como objetiva.

Culturas imorais
Se só uma pessoa no mundo segurasse uma menina no chão, enquanto ela luta e grita desesperadamente, cortasse suas genitais com uma lâmina séptica, a costurasse de volta, deixando apenas um pequeno buraco para urina e fluxo menstrual, a única pergunta seria o quão severamente essa pessoa deveria ser punida, e se a pena de morte seria suficiente. Mas quando milhões de pessoas fazem isso, invés da maldade ser magnificada em milhões de vezes, de repente ela se torna "cultura", e então magicamente se torna menos, invés de mais horrível, e é defendida mesmo por "pensadores morais" ocidentais, incluindo feministas. 
– Donald Symons
Cultura. Essa palavra é uma das maiores fontes de polêmica e discordância nesse debate. Seres humanos não são computadores perfeitamente racionais e estamos inevitavelmente sujeitos a emoções instintivas mais fortes do que algumas vezes gostaríamos que fossem. Por mais que se definam os termos com cuidado, há certas frases que eu estou programado para rejeitar e que me tornam defensivo. Eu posso falar mal do Brasil o quanto for, mas se um sueco falar "a cultura sueca é superior à brasileira", eu vou me ofender e adotar uma postura defensiva. Mas o que sequer significa dizer que uma cultura é "superior a outra" para começar?

No meu texto critico algumas culturas como sendo "inferiores" à "cultura das classes altas dos países desenvolvidos". Por exemplo a cultura islâmica radical, dos ciganos pobres, e no Brasil a cultura do funk. Essas palavras são a outra fonte de polêmica. Eu deixei claro no texto que as uso em um sentido moral, mas ainda assim minha afirmação pareceu preconceituosa para alguns e foi atacada por todos os lados. De fato, dados os episódios de imperialismo e genocídio cultural da história humana, é compreensível a inquietação. Insistir nessa terminologia pode parecer pouco mais do que uma simples provocação. Mas não é essa a intenção. Reconhecendo o quão crítica é a escolha de palavras aqui, espero que reformulando meu discurso minha crítica fique clara: Algumas culturas tendem a gerar mal estar, maior sofrimento e menor desenvolvimento humano do que a cultura dos países ricos desenvolvidos.

Alguns tentam atacar as palavras "inferior" e "superior" como logicamente incoerentes. Dizem que não se pode avaliar pessoas como inferiores ou superiores pois isso não faz sentido. "Quem é superior, Stephen Hawking ou Usain Bolt? Não faz sentido". De fato, se não deixarmos claro em que aspecto as estamos comparando, não faz sentido. Mas eu estou deixando claro: em um sentido moral, usando uma lógica utilitarista. Dentro desse paradigma, sob uma análise fria e matemática de índices e médias, acho palavras válidas. O único problema é o efeito provocativo inevitavelmente associado a elas. Mas admito, é um problema muito relevante. Dada a delicadeza da situação, portanto, vou conceder que dentro do possível essas palavras devem ser evitadas. Mas assim como seu abuso pode ser perigoso, também pode a supressão indiscriminada. Precisamos ter alguma forma eficiente de expressar que existem mais aspectos ruins em algumas culturas do que em outras.
Se nosso bem-estar depende da interação entre eventos em nossos cérebros e no mundo externo, e se há maneiras melhores e piores de alcancá-lo, então algumas culturas tenderão a produzir vidas mais dignas de serem vividas do que outras; algumas convicções políticas serão mais iluminadas do que outras; e algumas visões de mundo estarão erradas no sentido de que causam sofrimento humano desnecessário.
– Sam Harris; The Moral Landscape
Generalizações

Outra crítica que fazem a algumas dessas afirmações é que elas são generalizações ilegítimas. Realmente sempre há exageros quando se discute temas controversos. O debate acerca do termo "Islã, uma religião de Paz" ilustra bem o problema. De fato dizer que "o Islã é uma religião que prega a violência" é simplista e de certa forma hipócrita, afinal o Alcorão não prega muito mais violência do que o Antigo Testamento, compartilhado com os cristãos e judeus. O Islã, como qualquer outra religião é aberto a interpretação, e nada impede que hajam interpretações pacifistas (como de fato existem).

O problema do radicalismo islâmico portanto nasce de uma combinação de vários elementos. A doutrina do Alcorão é certamente um deles, mas se fosse o único os cristãos e judeus deveriam ser tão violentos quanto os muçulmanos. Também há questões geográficas, o nível de desenvolvimento humano das populações praticantes da religião, e uma série de circunstâncias que têm como consequência uma frequente interpretação fundamentalista da escritura. Mas o fato é que, por qualquer que seja o motivo, na prática a comunidade islâmica é mais propensa a essas interpretações e isso implica violentas afrontas aos direitos humanos, de forma que insistir que "o Islã é uma religião de paz" é igualmente simplista e hipócrita, além de perigoso.

No caso do Funk, vou reconhecer que, de fato, ao insistir em usar o termo "funk" pura e simplesmente, para me referir ao que na verdade são sub-estilos do funk, eu de fato faço uma generalização que embora ajude a me expressar com menos palavras, é facilmente mal-interpretada. O problema é que, na ausência de certos termos como funk "radical" ou "fundamentalista", não existe uma forma prática de corrigir esse erro. Eu poderia me referir ao estilo que eu critico como "funk sexista" ou "funk violento" etc, mas além de cada um desses títulos focar em só um dos aspectos que eu critico, me acusariam de já estar definindo o estilo de forma negativa. E mesmo que não acusem, mas digam "é, realmente, se for sexista eu também sou contra", eu teria deixado uma questão importante de fora: Quais funks se enquadram como sexistas.

De fato não conheço o funk e seus sub-estilos bem o suficiente. Mesmo assim, eu já ouvi funks que considero bastante construtivos inclusive e não vejo de nenhuma forma como negativos. Eu não estou por dentro o suficiente do mundo do funk para poder dizer com rigor qual é a proporção de "funk negativo" e "funk positivo", mas para o mundo externo a imagem que o funk passa é de um estilo bastante obsceno beirando o grotesco. E é esse aspecto que eu critico. Se houvesse um movimento dentro do funk, com artistas que promovem a criação de funk que respeita as mulheres e não exalta valores prejudiciais como hiper-sexualização, ostentação e violência, teria meu total apoio. O mesmo vale para movimentos ciganos que exaltam sua música, vestimenta e tradições rejeitando os valores negativos associados ao grupo, movimentos que procurem enfatizar a riqueza da cultura negra desencorajando atitudes subdesenvolvidas, e omovimentos islâmicos que preguem uma interpretação pacifista do Alcorão.

Mas e se, mesmo existindo essa vertente positiva do funk, eu ainda dissesse "ok, mas em média, a cultura do funk ainda é negativa enquanto essa vertente for minoritária"? E se eu fosse mais longe e dissesse que "em média, a cultura da favela é mais negativa do que a cultura da classe média". Será que é uma generalização ilegítima e elitista? Uma crítica que me fizeram no texto é que essa abordagem só colabora para a estigmatização da exceção. De fato, pode colaborar. Mas qual é a alternativa?

Outro dia me criticaram por afirmar que estatisticamente negros se envolvem mais em crimes do que brancos. Disseram que ainda que a proporção de negros em prisões seja maior do que a de brancos, isso só revela que negros são mais condenados do que brancos. Sim, tenho convicção de que parte da desproporção seja consequência disso. Mas afirmar que este fato sozinho a explica é prova de que a correção política está se tornando um empecilho para um debate honesto sobre assuntos "polêmicos" como criminalidade e raça. A população negra no Brasil e em praticamente todo o mundo foi vítima de todo tipo de barbaridade ao longo da história e é evidente que isso tem consequências. A população negra até hoje é predominantemente pobre e é um fato conhecido que exclusão social é uma das grandes causas da criminalidade. Na Austrália a situação é ainda mais bizarra: aborígenes são presos a uma taxa 14 vezes maior do que não-aborígenes. Será que simplesmente ignorar a história e negar seus efeitos é construtivo para o debate? Reconhecer esses fatos per se não sugere de nenhuma forma que negros ou aborígenes tenham uma propensão "genética" ao crime ou à pobreza. Se alguém a partir dessa premissa chegar a essa conclusão, devem sim ser atacados. Mas ataquemos a implicação falaciosa ou as outras premissas utilizadas implicitamente, pois é aí que o problema está, não fatos inegáveis, por mais tristes que possam ser.

Um detalhe interessante é que essas pessoas são as mesmas que apoiam (assim como eu) todo tipo de ação afirmativa visando a diminuição do estigma associado a raça ou classe social e a melhoria das condições de vida destes grupos. Mas ora, o fato deles estarem em condições menos desenvolvidas só nos dá mais razão para apoiarmos ações afirmativas! Então novamente pergunto, de que forma seria produtivo negar esses fatos? Tudo bem, lembrar a situação desvantajosa de grupos excluídos não colabora para a construção de uma imagem exatamente "grandiosa" deles no imaginário popular. Mas a consciência de que existem grupos desprivilegiados motiva a mim e muitos outros a apoiar medidas que os dê tratamento especial visando diminuir a desigualdade. Se motiva outros a rejeitar essas medidas, formar grupos neo-nazistas etc, então temos que estudar e descobrir o que exatamente torna essas pessoas propensas a atitudes tão hostis e violentas, porque claramente não é o simples reconhecimento de que existem grupos em estados mais desprivilegiados de desenvolvimento.

É claro, existe um limite. Certas afirmações podem ser tão perversas que acabam não passando de uma provocação nada construtiva. "A cultura negra é inferior à cultura branca". Essa é uma frase tão vaga e fácil de ser interpretada de forma negativa que é difícil ver que ponto positivo ela pode ter. A "cultura negra" e a "cultura branca" são tão abrangentes e heterogêneas que dificilmente seria construtivo tratá-las simplesmente como duas simples unidades. Certamente existem aspectos em algum subconjunto da cultura negra que são mais positivos do que certas práticas originais de alguma comunidade branca. Mas será que reconhecer que negros se envolvem mais em crimes do que brancos numa discussão sobre racismo e ação afirmativa passa dos limites? Será que reconhecer que o funk tem aspectos negativos é extremo demais? Será que constatar que de fato opiniões radicais são comuns na comunidade islâmica é xenofobia ilegítima?

Pode haver os que digam que "não vale a pena o risco" de fazer certas afirmações, dadas as possíveis interpretações ruins e movimentos hostis. Mas toda decisão na vida é um trade-off, e se a alternativa é simplesmente fingir que não existe mais violência, sexismo etc em certos grupos, então eu opto pelo racionalismo e honestidade intelectual e mantenho a minha posição.

Se o sueco fizesse todas essas ressalvas e deixasse claro que está se referindo exclusivamente a aspectos morais, talvez eu não me sentisse tão ofendido. Afinal, até certo ponto eu até concordo. De fato as instituições políticas, a mentalidade, os padrões de comportamento, os valores e até os efeitos sociais da produção artística na Suécia são tais que permitem um grau de desenvolvimento humano maior. Mas por que alguém deveria defender com tanto esforço o direito de dizer que uma cultura pode ser dita menos desenvolvida do que outra?

Do pior para o melhor

Alguns dizem que não faz sentido defender esse direito, que é contra-produtivo insistir nesse tipo de discurso e nessa nomenclatura. Dizem que as exceções sofrem com uma estigmatização mesmo sem ter nenhuma culpa, que adotar uma postura de superioridade faz aqueles que se deseja educar adotarem uma postura defensiva, e que isso é ruim didaticamente, etc. Devo admitir que, em parte, concordo com essa crítica. De fato, em algum grau é verdade. Mas em que grau? Por exemplo, meu professor na universidade certamente sabia (e ainda sabe) mais cálculo do que eu. Esse é um fato aceito e reconhecido, e constatá-lo não seria algo muito polêmico. Mas eu não sentia da parte dele nenhum tom de superioridade. Se alguém por algum motivo passasse a defender um discurso que inclui o reconhecimento da superioridade dos professores de cálculo com relação aos alunos, deveríamos reprimi-lo? Deveríamos atacá-lo por estar ofendendo os alunos? Se um professor falar publicamente sobre uma técnica que se aplica principalmente a alunos com mais dificuldade, deveríamos criticá-lo por estar estigmatizando os alunos bons?

Alguns talvez achem absurda essa comparação, que de certa forma sugere que uns podem saber melhor sobre o que é certo ou errado do que outros assim como alguns sabem mais cálculo do que outros. Sam Harris no livro que já mencionei faz uma analogia entre saúde e moral, e fala inclusive sobre a possibilidade de um dia termos "especialistas em moral" da mesma forma que hoje tempos "especialistas em saúde". Alguns também acham sua ideia de "especialistas em moral" repugnante: assustadoramente "Orwelliana" e "uma receita para o fascismo". Mas ora, ninguém se sente vivendo em um futuro distópico Orwelliano e neo-fascista se um médico ou mesmo um estudante de medicina nos dá conselhos sobre como poderíamos viver nossas próprias vidas de forma mais saudável. Ninguém acha imperialismo elitista se um voluntário educado de classe média der dicas de saúde para pessoas menos instruídas em locais com condições sanitárias precárias. Na verdade Harris sugere que as ciências médicas e a "ciência moral" que ele defende são meros ramos de uma mais genérica: a ciência do bem-estar.

Vale também reparar que embora o discurso incondicionalmente pró-minorias use argumentos relativistas e diga que "qualquer sistema de moral é igualmente válido", as premissas que sustentam suas críticas costumam ser utilitaristas (estigmatização causa sofrimento, ofensa com tom de superioridade causa sofrimento, etc). Ora, se concordamos com o utilitarismo então vamos ser construtivos e discutir qual das alternativas causa mais sofrimento ao invés de apelar para acusações de imperfeição filosófica que se levadas rigorosamente a sério paralisam qualquer possibilidade de debate racional. Afinal, se qualquer conjunto de práticas é tão válido quanto qualquer outro e nada é melhor do que nada, o que sequer significa lutar por "um futuro melhor"?

Polarização político-ideológica

Como já argumentei, reconhecer que de fato faz sentido que estatisticamente negros se envolvam mais em crimes é construtivo para o debate acerca de políticas públicas e ação afirmativa. De forma análoga, Reconhecer que há elementos condenáveis no funk também seria construtivo para o debate a cerca da regularização do estilo. A primeira lei que tentou regular o funk foi excessiva e ficou conhecida por "proibir" o estilo, e de fato existe uma parcela radical da direita que é abertamente preconceituosa e violenta e deve ser combatida (como fica evidente nos comentários desse vídeo). Mas a atitude atual de defender o funk como manifestação cultural legítima sem propor nenhuma regularização alternativa, de tolerar e encorajar sua presença nas escolas sob o pretexto de tolerância atacando qualquer proposta que limite o estilo, também passa longe dos limites do razoável.


Uma das críticas mais preocupantes que recebi foi de estar "dando voz e argumentos a extremistas de direita". Ora, se eu não estiver em um extremo eu tenho que necessariamente estar no outro? Certamente podemos encontrar uma solução melhor entre os dois limites. Poderíamos por exemplo categorizar o trabalho de alguns artistas específicos como entretenimento adulto e impor restrições à sua atuação, impedindo performances próximas de escolas, creches ou zonas residenciais como em alguns estados dos EUA (e é claro, impedindo, sua reprodução dentro das escolas). Essas são apenas algumas propostas que me vêm à cabeça em um rápido devaneio. Podem ser adequadas ou não, e podemos pensar em muitas outras, como foi o caso da deputada bahiana Luiza Maia, autora da lei que ficou polemicamente conhecida como "Lei anti-baixaria". Mas o objetivo do texto não é esse. É algo mais urgente: questionar um paradigma relativista que paralisa o debate, para que aí sim, a sociedade esteja aberta a discussões e disposta a fazer propostas ao invés de se tornar defensiva e atacá-las como elitismo opressor como bem ilustram as reações à lei de Luiza (como essa).
Uma ciência da prosperidade humana pode parecer estar a uma grande distância, mas para alcançá-la, precisamos primeiro permitir que o terreno intelectual exista.
– Sam Harris
Enquanto o terreno não existir, me parece que se algum movimento dá força indireta à extrema direita, é a extrema esquerda. Quando as massas trabalhadoras do mundo desenvolvido se vêem rodeados e afetados por problemas sociais causados em grande parte por imigrantes e tem que escolher entre intelectuais relativistas defensores do multiculturalismo ou líderes populistas carismáticos de extrema-direita, quem será que eles vão apoiar?

Nesse episódio de South Park os "white trash rednecks" se revoltam quando "pessoas do futuro" começam a migrar para os Estados Unidos do presente e "tomar o emprego" de todo mundo. 
Essa teoria já vem sendo sugerida há algum tempo (como nesse artigo), desde o caso de Breivik, e os assustadores resultados das eleições para o parlamento europeu esse ano só parecem confirmá-la, como ilustram os comentários em notícias como essa.

De volta à estética

Como falei mais cedo, não vejo como seria produtivo quebrar a cabeça para encontrar uma forma de tratar valores estéticos como algo absoluto. De fato, normalmente não há por quê. Mas em alguns contextos defendo que pode ser legítimo, e mais produtivo do que uma abordagem excessivamente relativista.

Se em qualquer momento estiver em discussão em uma escola, por exemplo, um evento relacionado a música, e os organizadores se dividirem entre um grupo que prefere promover a música clássica, e outro que prefere explorar o funk, mesmo que só funk inofensivo, eu estaria em na maioria das vezes no lado que defende a música clássica, por uma série de motivos:

  • Maior exercício intelectual ao estudar estilos mais complexos. Assim como conceitos complexos da matemática podem ser um exercício mental construtivo mesmo para quem não seguir carreira na área, a música erudita também pode ter um papel parecido.
  • Bem estabelecido como estilo com relevância histórica, o que o torna neutro comparado a estilos contemporâneos que inspiram opiniões mais diversas. (Antes que me acusem de opressor, também acho que o Jazz, Blues e mesmo o Samba são relevantes historicamente)
  • Enriquece culturalmente as crianças através da diversificação, expondo-as a algo que elas não teriam acesso na cultura popular "mainstream". Talvez esse seja o motivo mais crítico dos três.
Mas "maioria" não quer dizer 100%. Se o evento por acaso se tornasse anual, ou deixasse de focar necessariamente em apenas um estilo, eu encorajaria a inclusão do funk. Mas encorajaria sob a condição de que fosse feita uma crítica explícita contra os tão recorrentes temas ofensivos do Funk. Caso contrário, por mais inofensivo que fosse o funk abordado, não acrescentaria nada às crianças que já estão imersas em um ambiente onde o funk é onipresente. Pelo contrário, só reforçaria ainda mais a lavagem cerebral realizada pelas forças sufocantes de uniformização às quais estão sujeitos. Já como ferramenta de crítica ao funk, aí sim, acredito que não haja nenhuma mais poderosa do que o próprio funk, principalmente para aqueles que sentem que o estilo faz parte da identidade de sua comunidade.

Reparem que embora eu esteja julgando um conjunto de obras artísticas mais relevante que outro em um dado contexto, meus argumentos dizem mais respeito a valores morais do que estéticos. Eu me baseio nas premissas de que o desenvolvimento intelectual através do estudo de temas complexos é frutífero para o desenvolvimento humano, de que o estudo da história é algo construtivo, e de que a diversificação cultural é desejável para a população. No final quase tudo se reduz a valores: até a autoridade da medicina, por exemplo, é respeitada formalmente pois concordamos com seu conceito de saúde e compartilhamos o valor que damos à honestidade científica, respeito por evidências e outros valores epistemológicos em que a medicina se baseia.

Conclusão

Rigorosamente, não podemos garantir nenhuma verdade absoluta: Nem afirmações sobre gosto (e.g. batata frita é melhor que chocolate), nem morais (e.g. torturar criancinhas é errado) e nem mesmo factuais (e.g. tem uma lua orbitando a terra) ou lógicas (e.g. 2+2=4). Mas para não deixar que as limitações de nossa filosofia nos paralisem, precisamos tratar algumas coisas como objetivas o suficiente. Na prática já fazemos isso com muitas questões factuais e lógicas, e até certo ponto até morais. Mas como defendi no texto, embora na prática tomemos certos princípios morais como verdades absolutas, não abraçamos essa atitude conscientemente e são poucos os que a defendem intelectualmente. Mas da mesma forma que o conceito de saúde e seu estudo sistemático beneficiam a sociedade, o reconhecimento de certos princípios morais como valores científicos fundamentais também beneficiaria.

É claro que a situação na favela é difícil. De fato a estigmatização é algo que atormenta as classes negras e pobres do Brasil desde a colonização etc. O mesmo vale para os imigrantes de origem islâmica na Europa e América do Norte. O caso do funk pode até também ser delicado, dado que alguns podem considerar o estilo parte importante da identidade cultural. Mas a cultura da favela abrange muito mais do que funk e, no fundo, o funk não deixa de ser uma escolha.

Imagine que o movimento skinhead no Brasil começa a se tornar mais popular. Vê-se mais skinheads nas ruas e logo começam a sair notícias sobre racismo, homofobia, violência, crimes de ódio etc. Imagine então que como resposta surja um movimento anti-skinhead. Não é claro que o movimento anti-skinhead quer proteger o bem-estar na sociedade? Se o movimento ganhar visibilidade talvez as pessoas sejam mais críticas com relação aos skinheads. Talvez isso evite que jovens suscetíveis acabem sendo atraídos por eles. Talvez a conscientização da população incentive o debate, criando um ambiente propício para propostas e tentativas de solução. Talvez aprovem leis que punam com mais rigor crimes de ódio, apologia, etc. Mas ora, calma aí! Nem todo skinhead é fascista e violento! Logo, o movimento anti-skinhead deve ser combatido, pois acaba estigmatizando os pobres skinheads não-fascistas que não tem culpa de nada. E vamos reprimir também qualquer discurso que sugira que os skinheads formam um grupo violento e moralmente inferior. Faz sentido?

OK, reconheço que o caso do funk é mais delicado, afinal o grupo associado ao estilo calha de ser um grupo com origens históricas muito mais turbulentas do que o grupo de skinheads. Mas, mutatis mutandis, a analogia ainda se mantém. Afinal, um indivíduo opta pelo funk tanto quanto por pertencer ao movimento skinhead. E mesmo para aqueles que sentem que o funk faz parte da sua identidade cultural, só com o reconhecimento de que o funk mainstream atual está muito carregado com aspectos negativos podemos sonhar com movimentos tanto fora quanto dentro do funk que promovam valores mais saudáveis e rejeitem aqueles que sujam seu nome hoje em dia. E isso vale para a comunidade do Hip-Hop, do Reggaeton, dos países da África subsaariana onde a mutilação genital é comum, dos ciganos, dos imigrantes muçulmanos, latinos, negros etc. Sua cultura deve ser simplesmente reprimida? Não. Mas também não deve ser indiscriminadamente exaltada sob pretexto de multiculturalismo. Devemos estudar seus vários aspectos e com base em fundamentos morais universais o suficiente avaliar racionalmente que aspectos devem ser exaltados e quais reprimidos.


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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Funk é cultura? Os perigos do radicalismo relativista




Esse já é o segundo texto que escrevo cujo título segue essa estrutura. E acho possível que não seja o último. A razão disso é uma tendência relativamente comum que observo no ser humano de adotar uma perspectiva binária ao analisar certos problemas. No caso, o problema em questão envolve o relativismo e o elitismo. Como todo assunto polêmico, é sempre possível que alguém se sinta ofendido. Mas se a única forma de não ofender é não criticar, então sou forçado a me arriscar e fazer a crítica da forma mais construtiva possível.

Imperialismo e genocídio cultural

“Quando o Senhor teu Deus te houver introduzido na terra a que vais a fim de possuí-la, e tiver lançado fora de diante de ti muitas nações, a saber, os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que tu; e quando o Senhor teu Deus as tiver entregue, e as ferires, totalmente as destruirás; não farás com elas pacto algum, nem terás piedade delas;
não contrairás com elas matrimônios; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; pois fariam teus filhos desviarem-se de mim, para servirem a outros deuses; e a ira do Senhor se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria.
Mas assim lhes fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, cortareis os seus aserins, e queimareis a fogo as suas imagens esculpidas.
Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus te escolheu, a fim de lhe seres o seu próprio povo, acima de todos os povos que há sobre a terra.”
– Deuteronômio 7:1-6
Nossa história nos presenteia com inúmeros casos de imperialismo e genocídio cultural. O trecho bíblico acima é um ótimo exemplo da abordagem que o ser humano adotou por séculos para lidar com conflitos culturais e étnicos. O novo testamento amenizou toda essa violência, mas não deixou de pregar um discurso de imperialismo cultural:
"E, aproximando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos."
– Mateus 28:18-20 
"E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura.
Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado."
– Marcos 16:15-16
Mesmo assim, a história nos prova que nem Jesus foi capaz de aquietar a sede de sangue das elites no poder. Nós no novo mundo sabemos bem disso.

Ilustração de Theodor de Bry para o livro "Brevisima relación de la destrucción de las Indias", século XVI, retratando as atrocidades cometidas pelos espanhois na conquista de Cuba.
"Sobre-correção" (over-correction) relativista

Certa vez estava discutindo sobre dominação cultural e mencionaram como é imperialista e xenófobo considerar uma cultura superior a outra. De fato muitas vezes é perigoso e, como reconheci logo acima, a história mostra como realmente carnificinas xenófobas e genocídios culturais foram realizados sob o pretextos civilizatórios. Mas e hoje em dia? Será que é sempre puro elitismo injustificado?

Sam Harris defende em seu livro "The Moral Landscape" (algo como "A Paisagem Moral") que a ciência pode e deve se posicionar com relação a temas morais, tocando um tema polêmico. Segundo ele, os avanços na neurociência e outras áreas da medicina nos permite medir cada vez melhor e de forma mais objetiva as causas do sofrimento humano. Na presença de um dilema moral, segundo o autor, esse conhecimento poderia ser usado para decidir que opção causa menos sofrimento. Em uma entrevista para o Huffington Post, o autor é perguntado "por que é tabu para um cientista tentar responder questões morais?". Em sua resposta, ele diz que um dos motivos é que:
"muitos cientistas têm sido induzidos a erro por uma combinação de má filosofia e correção política. Isso os leva a crer que a única posição que pode ser defendida intelectualmente na presença de uma discordância moral é considerar todas as opções igualmente válidas ou igualmente sem sentido. Em certo nível, essa sobre-correção é compreensível e até nobre dada nossa história de racismo, etnocentrismo e imperialismo. Mas não deixa de ser uma sobre-correção. Como tento mostrar no meu livro, não é sinal de intolerância notar que algumas culturas e sub-culturas fazem um terrível trabalho em produzir vidas humanas que valem a pena ser vividas."
O mito do bom selvagem

Tudo bem, vamos evitar as palavras "superior" e "inferior" quando julgarmos diferentes culturas. De fato elas já estão muito manchadas de sangue. Mas não vamos fechar os olhos sob pretexto de tolerância e modernidade quando na África tribos mutilam a genitalia feminina em rituais religiosos.

Genitalia de uma menina é mutilada em ritual religioso em Gana
O extermínio dos povos indígenas nas Américas e a escravização dos negros foi uma barbaridade injustificada. Porém, esses povos explorados também não eram "santos". Muitas tribos indígenas praticavam canibalismo, homicídios ritualísticos, e muitos negros escravizavam seus prisioneiros de guerra na África e vendiam-nos para europeus. Todas práticas que seriam hoje vistas como crimes de guerra. Repito: Isso não justifica as práticas dos europeus. Esse discurso seria um típico caso do "sujo falando do mal lavado". Mas também não é realista ou construtivo viver na ilusão de que povos primitivos são seres puros e admiriáveis que ainda não foram "corrompidos pela horrível civilização".

Hoje em dia vemos versões modernas desse mito, que poderiam ser chamados de algo como "o mito da boa minoria". No Brasil o "mito do bom favelado", na Europa ocidental o "mito do bom imigrante" e na oriental o "mito do bom cigano". É fundamental reconhecer aqui que ser morador da favela, imigrante ou cigano não deve ser per se condição suficiente para que um indivíduo seja estigmatizado. Mas negar que, a nível coletivo, esses grupos mantém práticas moralmente questionáveis, é cair no outro extremo.

Quando alguém critica aqueles que denunciam uma cultura como inferior a outra e eu menciono a mutilação genital, a reação costuma ser: "ah, mas aí é diferente, eles estão infligindo sofrimento sobre outro ser humano". Ou seja, reconhece-se que existem casos onde é válido criticar determinada cultura. Como costumo dizer, nada é binário. Entre 0 e 1 existem infinitas possibilidades e dificilmente uma solução está em um extremo. A questão que devemos nos perguntar é: onde desenhar a linha que separa a tolerância cultural do pouco caso a problemas sérios de bem-estar humano?

Funk Carioca

Um ótimo caso ilustrativo para todo esse debate é o funk carioca. Existe uma tendência atual no Brasil de se defender o funk com unhas e dentes, dizendo se tratar de uma expressão artística legítima, tão válida quanto qualquer outra, e acusando todos os seus críticos de elitistas intolerantes.

Freixo se pronuncia na Alerj em defesa do movimento "Funk é cultura"
Funk é arte? Sim. Não nego que seja, por definição, arte. É legítimo? Sim. É a produção cultural de um grupo que, gostemos ou não, é importante na sociedade brasileira. É tão válido quanto qualquer outra estilo? Bom, no sentido de merecer o título de “arte”, pode ser. No sentido de ser tão positivo e valioso quanto outros estilos? Aqui a questão começa a ficar mais complexa. O que define algo como positivo e valioso?

Minha crítica ao Funk Carioca é a mesma que faço ao Hip-Hop americano: misoginia, exaltação e naturalização da violência e ostentação. Seus defensores logo bradam "nem todo funk fala sobre essas coisas". Tudo bem. Pode ser verdade. Mas sejamos realistas: para todos os efeitos práticos, a imagem que o funk passa para o mundo externo é de um estilo extremamente sexualizado, vulgar, violento e cada vez mais ostentador. O "Vem mama em mim" que eu ouço pela janela da sala com meus avós, o "Rap das Armas" eu ouço em festas de todo tipo, o "Parece que tem uma piroca no chão" que eu ouço no celular de estranhos no ônibus e o "Ela da pra nois" em volume ensurdecedor que por vezes sou forçado a ouvir de caixas de som ilegalmente adulteradas falam, sim, sobre "putaria", violência e ostentação. Se você ainda acha que essa é uma generalização incabível, então deixo claro aqui: Esse texto é sobre esse tipo de Funk. Se há um sub-gênero do Funk que não envolve nenhuma das temáticas que eu critico aqui, então não tenho, a princípio, nada contra ele.

OK, mas qual é o problema das músicas falarem sobre sexo, violência e ostentação?

A arte e a mídia como reflexo da sociedade

Os defensores do funk normalmente se defendem desses ataques alegando que essa temática reflete a sociedade dos habitantes da favela e que portanto é natural que estejam presentes nas letras das músicas. Mas ora, não é isso que está em questão aqui. Que fique claro: eu critico o funk não por simplesmente conter certos temas, mas por exaltar, glamorizar, e perpetuar certos valores. Esse argumento, portanto, não defende de nenhuma forma o funk da minha crítica. A questão realmente relevante aqui é outra.

A arte e a mídia como influências na sociedade
“A mídia pode ser um instrumento de mudança: Pode manter o status quo e refletir as visões da sociedade, ou pode despertar as pessoas e fazer com que mudem de ideia. Depende te quem estiver no comando.”
– Katie Couric
Essa é uma das frases exibidas no trailer do documentário Miss Representation, sobre os efeitos nocivos da mídia para a mulher. Já se sabe atualmente que a mídia exerce forte influência sobre a sociedade. Influenciam o que compramos ou deixamos de comprar, comemos ou deixamos de comer, ou até o que tentamos ser ou deixar de ser. Um documentário nacional muito interessante, que mostra como a mídia influencia as crianças no Brasil, é o "Criança, a alma do negócio". O problema é que o pensamento marxista parece estar tão impregnado na cabeça de algumas pessoas que elas não conseguem mais olhar para um problema sob outra ótica. Como resultado, elas só se sensibilizam e reagem contra a mídia quando ela é controlada de cima para baixo por uma elite dominante. Quando é um fenômeno espontâneo de um grupo minoritário da sociedade, fecham os olhos.

Ora, não importa quem produz a mídia. Ela tem impacto do mesmo jeito. E como disse Katie Couric, ela pode manter o status quo ou colaborar para mudá-lo. E eu digo mais. Ela também pode reforçar ainda mais certas características da sociedade, tornando-as cada vez mais exageradas com o passar dos anos. No documentário Tough Guise, Jackson Katz mostra como os músculos de bonecos para meninos vêm ficando cada vez maiores ao longo do tempo. O mesmo fenômeno é observado em personagens de desenho e mesmo lutadores reais de MMA.

Ilustrações do super-homem em 1939 e 2004, respectivamente
Será que não há nada parecido acontecendo no Brasil?

Concurso Miss Brasil em 1954
Concurso Miss Bumbum em 2013
Quando um grupo carente da sociedade, que vive à margem do estado, sem acesso a educação, e mora em condições sub-humanas ganha acesso às mesmas tecnologias de produção e divulgação de mídia que a elite, o que podemos esperar que aconteça? Que dimensões do ser humano esperamos que sejam enaltecidas? As mais nobres ou as mais primitivas? A resposta é óbvia:

Nas favelas do Brasil ou nos guetos dos EUA, a história é a mesma: Sexo, dinheiro e violência.

Mas qual o problema da promiscuidade e ostentação?



Para deixar claro, não é a promiscuidade em si que eu critico. Mas a dinâmica sexual, as relações de poder entre os sexos, a competitividade e o papel do sexo na sociedade. Meu problema é com a atribuição de papéis sexuais polarizadas aos gêneros. No Brasil a mulher é tratada como objeto e o homem como predador sexual. E se é a essa sexualização do ser humano que o personagem da tira se refere, então concordo com ele. De fato o ser humano no Brasil é sexualizado demais comparado a outros países e acho que deveria ser menos. Em termos de sexo casual pura e simplesmente, a Finlândia é bem mais promíscua que o Brasil. Mas o índice de igualdade de gêneros também, em contraste, é bem maior. Violência nem se fala. Como diz Caroline Heldman, não é apenas a promiscuidade em si que está sendo exaltada pelas imagens hiper-sexualizadas. É a dicotomia "Objeto vs. Sujeito". Esse vídeo mostra bem como o retrato do homem e da mulher são diferentes. Mas o que violência tem a ver com comportamento sexual?
“O comportamento violento em homens pode ser explicado por teorias tradicionais de seleção sexual. Em uma revisão da literatura, o Professor John Archer da University of Central Lancashire, associada à British Psychological Society, aponta para uma série de evidências que sugerem que altos índices de agressão física masculina tem suas raízes na competição interna entre homens”
Science Daily
Quando perguntado sobre que condições externas afetam os índices de violência, o professor Archer diz:
“As evidências encontradas na pesquisa destacam que problemas sociais como desigualdade de renda e competição entre machos podem contribuir para a violência que vemos na sociedade atual.”
O retrato hiper-sexualizado da mulher, um dos aspectos mais infames do funk, mostra como é perigosa a cultura sexual nessas comunidades: Ele influencia as mulheres de forma negativa e colabora para que elas vejam a si mesmas como objetos sexuais. Funciona como uma força que as mantém longe de posições de liderança e desperdiça grande parte de nosso capital humano. Esse é um problema extremamente profundo e já escrevi um texto inteiro que trata em parte desse assunto. Os homens, por sua vez, também só as vêem como "cachorras" a serem conquistadas como troféus. Engajam em competições para ver "quem come mais", não conseguem ou se recusam a ter relacionamentos sérios, e muito menos desenvolvem algum senso de paternidade.
“Quem gosta de homem é gay,
Mulher gosta de dinheiro,
Isso é padrão no mundo inteiro,
Você não é o primeiro e nem vai ser o derradeiro,
E isso nunca vai mudar,
Por isso seja
Fiel a putaria, nunca deixe a putaria,
Viva dela todo dia, brinde sempre a putaria.”
– Mr. Catra, Fiel à putaria

O abandono do pai e as dificuldades da mãe solteira só revoltam as crianças, produtos dessa cultura doente, que então se tornam violentas e acabam morrendo no tráfico.

23m13s: Entrevista com mãe solteira cujo filho morreu no tráfico

Não estou dizendo que o funk é causa disso tudo. Mas exalta uma série de valores que perpetuam essa realidade. Quanto à violência, creio que também não preciso acrescentar muitos detalhes. Afinal ela já é uma coisa ruim que causa sofrimento por si só. A naturalização da violência já tão presente da vida dos jovens e crianças que crescem na favela, a desvalorização da vida e a busca inconsequente por ascensão social colabora para maiores índices de morte, tortura, estupro etc.

A ostentação se encaixa perfeitamente em todo esse paradigma. É por definição uma exibição vulgar de símbolos de status. Reforça a importância do dinheiro e, através dele, da conquista de mulheres-troféu e funciona como uma afirmação de status na hierarquia social, acirrando a competição e frustrando a população que não tem acesso a nada disso. Frustrando e causando revolta que se torna ódio. Ódio que é alimentado ao longo da vida e resulta em violência.

MC Daleste foi morto a tiros no palco, durante apresentação.
A inveja e a disputa por status de dominância em grupos sociais podem parecer assuntos bobos ou até infantis, mas a notícia ilustra muito bem o estudo de Archer: muitas vezes não é. O ser humano é um animal social, e na estrutura social da nossa espécie existe uma hierarquia de dominância. E a cultura fútil da ostentação generalizada só acentua nossos instintos mais primitivos e dita o comportamento tanto das classes baixas quanto das altas, gerando tanto violência intra-classe quanto inter-classe.
“Ei boy, playboy, sente na pele agora o ódio que você causou
enquanto você andava de Jaguar conversível
se exibindo de Montblanc camisa da Diesel
frequentando o jóquei ou clube de campo
eu tava era nos corre com a firma campanando
esperando só passar sua mãe dentro do Porsche
pra eu gritar é um sequestro com a minha 9mm
sorte, de você que não teve ainda o crânio
estraçalhado por um tiro de fuzil iraquiano
ou até mesmo estrangulado na cela do seguro
ou quem sabe no cativeiro no quarto escuro
mas não só nos peão com as puta de Mustang
pagando de Don Juan na merda do baile funk
é dança da motinha, dança da lacraia
dança da foguentinha é tanta merda que não acaba
enquanto queima ônibus explode viatura
de coquetel molotov panico na rua
delegado enrolado no colchão pegando fogo
empresário no meio do mato encontrado morto...
louco? não é meu rap que vem falar a verdade
é o sistema que é cruel violento e sem massagem”
– Realidade Cruel, Tsunami
Não sei se há artigos que confirmem essas minhas afirmações específicas sobre o Brasil. Mas com base nos que já citei, não é um grande salto fazer essa interpretação. Além do trabalho de Archer, outro que ilustra bem como toda essa questão do sexo, competição e ostentação estão relacionados é o documentário Tough Guise, já mencionado mais acima. Mas a elite religiosamente marxista e relativista de classe-média insiste, por motivos que me parecem pura sobre-correção e paranóia, a defender vigorosamente tudo isso.


Sério? Sério que é TÃO importante defender ISSO? Eu acho que se 1% das influências negativas que eu citei forem verdadeiras, já não vale a pena gastar energia para defender obras como esse clipe. Mas há realmente quem defenda esse tipo de expressão? Sim. É comum, por exemplo, dizerem que "no fundo toda a sociedade é assim" e que a única diferença entre o funk e outros estilos é que no funk não há "pudor hipócrita" da classe dominante. De fato, concordo que em grande parte a sociedade é assim. Não é à toa que o funk e o hip hop fazem tanto sucesso na classe média, como já ressaltei. Mas novamente, isso não defende o funk de nenhuma forma. É mais uma extensão da crítica a toda a sociedade. E sim: eu critico esses valores tanto na favela quanto fora dela. Mas o irônico é que Brasil se une para fazer chacota do Rei do Camarote, mas quando o criticado é o MC Guimê, se torna elitismo opressor.

O funk e o hip hop perpetuam valores nocivos e a ubiquidade deles na sociedade é algo ruim tanto para os de classe baixa quanto os de classe alta. A diferença é que eu posso me isolar no meu quarto com ar condicionado, assistir a documentários em inglês que questionam o estilo de vida que a mídia nos vende, ler livros que me expõe a valores com os quais eu me identifico mais, e optar por frequentar locais e andar com pessoas que em certo grau compartilham desses valores. Na prática, é inclusive o que quase toda essa classe média moderninha e relativista de defensores do funk faz. E mesmo para mim, foi difícil. Eu já convivi com grupos na escola e faculdade cujos valores não estavam distantes desses perpetuados pelo funk. E tomar consciência do mal que aquilo fazia para meu desenvolvimento como ser humano não foi um processo tão simples. Se foi difícil para mim, imagina para quem mora na favela.

Certa vez estava discutindo com minha empregada. Quando ela começou a trabalhar com a minha família há quase 10 anos, ela não tinha religião e tinha dúvidas com relação à existência de Deus. Recentemente, porém, ela se tornou Testemunha de Jeová e passou a frequentar a igreja com seus dois filhos. Questionada pela minha avó (cristã ecumênica assumida) sobre a questão do sangue, ela disse que não é tão fanática e não deixaria de fazer transfusão se essa fosse a orientação médica. Curioso, porém, perguntei: "Por que você sente a necessidade de frequentar Igreja? Por que não poderia exercer sua própria religiosidade dentro de casa? Já que não concorda com certas práticas da sua Igreja?". E sua resposta foi:
"Ai Ariel, é tanta coisa ruim que a gente vê lá na comunidade, tanta droga, crime, funk… Eu quero mostrar a meus filhos um outro lado…"
Sim. Ela mencionou funk. E embora talvez ela seja de fato uma minoria em um ambiente já tão saturado de funk que as pessoas nem se incomodam, ela não é a única que questiona os valores da favela. Essa resposta, inclusive, me fez pensar se esse não é um dos motivos do sucesso das igrejas protestantes nas favelas. Para alguns, elas parecem ser a única saída.
"Tem mais um pente lotado no meu bolso
Qualquer roupa agora eu posso comprar
Tem um monte de cachorra querendo me dar
De olho grande no dinheiro esquecem do perigo
A moda por aqui é ser mulher de bandido"
–Soldado do Morro; MV Bill
MV Bill é um grande exemplo de como é possível retratar a realidade da favela de forma crítica e construtiva, de forma a mudar o status quo, e não reforçá-lo. Meu ataque não é à cultura da favela por ser da favela. Por ser "coisa de preto, pobre e favelado" como pode dizer algum neonazi ignorante. Mas sim por perpetuar certos valores que são prejudiciais para os próprios habitantes da favela. MV Bill é cultura da favela. Realidade Cruel é cultura da favela. Emicida é cultura da favela. Não sou conhecedor do estilo mas sei que existe muito que merece ser valorizado. Meu problema não é com eles. Meu problema é com artistas como Mc Rell Kamasutra (e.g. Vem mama em mim), Mc Duzinho (e.g. Vou morar no cabaré) e Mr. Catra (dispensa exemplos).

Mas com um discurso parecido os conservadores atacam o Death Metal, por exemplo! E aí???

A rivalidade "Funkeiros vs. Rockeiros" é conhecida e é inevitável eu ouvir esse tipo de argumento. Tenho duas respostas para me defender dessa analogia, que vou pontuar aqui caso já não tenha ficado claro no raciocínio apresentado acima:

1. O funk retrata e exalta aspectos da realidade local, perpetuando e reforçando o status quo. O death metal (ou metal no geral) é frequentemente uma obra de ficção fantasiosa. Assassinatos brutais, estupros, tortura, zumbis e demônios não são aspectos mais reais do universo dos metaleiros do que qualquer outro. Dessa forma, a violência pode até dessensibilizar o ouvinte ou seja lá o que for, mas não exalta nenhum aspecto negativo presente na comunidade de death metallers.

2. O death metal não é empurrado goela abaixo das pessoas como é o funk. O death metal não está presente em nenhuma forma de cultura de massa. O death metal é ouvido só quando há interesse genuíno do indivíduo por aquele tipo de música e portanto não é resultado de uma quase lavagem cerebral como é no caso do funk. Ninguém (ou quase ninguém) está imerso contra a vontade em um universo onde o death metal é onipresente. Me aprofundarei mais nessa questão da "autenticidade do comportamento do indivíduo" mais adiante no texto.

Pode até ser que mesmo assim o death metal torne indivíduos menos sensíveis à violência ou mais agressivas e que seja perigoso para crianças. Eu, particularmente, na ausência de experimentos empíricos e portanto com base na minha experiência própria, acredito que, se isso for verdade, é em menor grau do que o funk. Mas em todo caso, enquanto há dúvida, eu fico feliz de viver em um mundo onde as pessoas se preocupam com isso e colocam CDs com capas violentas fora do alcance delas e tomam outras medidas do tipo. Ouvir death metal não quer dizer que eu queira mais é que CDs do Cannibal Corpse sejam distribuídos para criancinhas na versão sem censura indiscriminadamente.

Ah, e funk é ruim, sei, metal que é alta cultura.



Mais um argumento na linha "Funkeiro vs. Rockeiro". Não. Iron Maiden não é alta cultura. Mas pelo menos não é baixa. Novamente, o Iron Maiden tem letras fantasiosas ou simplesmente neutras. Se alguém acha que as letras do Iron Maiden perpetuam ou reforçam aspectos negativos da sociedade por favor me mostre que eu vou reconsiderar minha opinião.

Mas e a liberdade individual dos funkeiros que querem mesmo é ser promíscuos e ostentar?

O relativismo é tanto que é comum perguntarem "o que tem de errado se quiserem se vestir de forma hiper-sexualizada ou gastar em cordão de ouro e carrão pra comer cachorras? Causa sofrimento pra quem?". A esses eu respiro fundo e respondo: A nível individual, isso não é necessariamente um problema tão grave, realmente. Mas não deixa de ser algo que eu vejo com desprezo. Assim como o vocalista de uma banda neo-nazista, por exemplo, por mais que eles não façam apologia a violência explicitamente e não causem sofrimento direto a ninguém.

Em todo caso, não estou criticando um comportamento individual voluntário, como já deve estar claro a essa altura do texto, e sim um padrão cultural que impõe um comportamento.
“Nunca haverá uma concessão de habeas mentem ("tenha sua mente"); pois nenhum xerife ou carcereiro pode trazer uma mente ilegalmente aprisionada ao tribunal, e nenhuma pessoa cuja mente tenha sido aprisionada […] estaria em posição de se queixar de seu aprisionamento. A natureza da compulsão psicológica é tal que aqueles que agem sob imposição permanecem sob a impressão de que agem de sua própria iniciativa. A vítima da manipulação mental não sabe que é vítima. Para ela, as paredes de sua prisão são invisíveis, e ela acredita que é livre.”
– Aldous Huxley, Brave New World Revisited
Huxley se referia a vítimas de condicionamento de massas e manipulação psicológica realizados por elites, mas os artifícios usados por essa elite mal intencionada se baseiam em fraquezas e reflexos naturais do ser humano. Quando se vive imerso em uma dada cultura, quanto mais uniforme ela for, mais difícil será rejeitar seus valores, pois não se conhece alternativas. Essas pessoas não matam, ostentam e desrespeitam mulheres porque esse é um desejo genuíno e fruto de sua individualidade. Não é porque é algo "natural de preto pobre". É um comportamento de bando, mais coletivo do que individual. Eles o fazem porque as circunstâncias não os apresentam alternativas. Nos termos de Isaiah Berlin, não há liberdade positiva.
“Liberdade positiva é o gozo de poder e recursos para realizar todo seu potencial, em contraste com a liberdade negativa, que é a ausência de restrições externas.”
– Wikipedia
Fala-se muito na liberdade negativa. Mas será que a positiva em alguns casos não é mais importante?
“Esses milhões de pessoas anormalmente normais, vivendo sem problemas em uma sociedade à qual, se eles fossem inteiramente humanos, não se ajustariam, ainda vivem na "ilusão da individualidade", mas na verdade eles vêm sofrendo um alto grau de desindividualização. Sua conformidade está se tornando um tipo de uniformidade.”
– Aldous Huxley, Brave New World Revisited
As pessoas precisam despertar. Enxergar que o sistema de valores em que estão imersos não é o único. Só assim elas terão liberdade verdadeira para escolher seus caminhos. O que querem seguir. Quem querem se tornar.
“Não se pode ser o que não se pode ver”
– Marian Wright Edelman
(lema do "Representation Project")
Todos esses aspectos do funk que eu critico são aspectos que eu acredito infligir frustração e sofrimento em seres humanos. Não infligem tanto sofrimento quanto a mutilação genital, é claro. Mas tem um papel na perpetuação de uma realidade que, por sua vez, pode começar a chegar perto. Reforça-se o status quo em uma sociedade onde predomina o mal-estar humano. Onde rapazes que, como se já não bastasse nascer pobre na favela, vivem sob uma pressão de ficar rico e "comer cachorras" ainda maior do que aquela que aflinge a classe-média, e onde mulheres só são valorizadas pelo seu corpo e nenhum dos dois é incentivado a se desenvolver de outras formas.

Mas o problema vai além disso. Eu destaco o funk e hip-hop porque acredito serem expressões culturais extremamente destrutivas para a sociedade. Mas se o assunto for simplesmente a mediocridade cultural, então há muitas outras formas baixas de entretenimento que são defendidas ferozmente pela elite relativista brasileira.

A cultura da futilidade e o progresso

Ultimamente, venho observando uma tendência em certos grupos de defender tudo e todos, livrando-os sempre da culpa (também escrevi um texto inteiro sobre isso – "Livre arbítrio e culpabilidade"). Outro dia, por exemplo, critiquei a programação intelectualmente vazia da Globo e a superficialidade e falta de senso crítico dos fiéis telespectadores que vivem diante dessa programação quase que em um transe hipnótico. Como esperava, fui prontamente acusado de arrogância e intolerância com aqueles que assistem Globo. Eu seria um elitista e estaria impondo meus gostos particulares, tão válidos quanto quaisquer outros, aos telespectadores oprimidos da Globo. Típico caso de imperialismo cultural. Eu não tenho nada contra e realmente nem faço juízo negativo de alguém  porque a pessoa assiste novela ou BBB. Mas se a pessoa SÓ assiste programação na categoria novela e BBB, então sim, temos um problema. E aqui eu volto a atacar o relativismo.

Imagine um mundo cuja cultura é propícia ao progresso e ao desenvolvimento. Como seria esse mundo? Um mundo onde as pessoas se sentem estimuladas a colaborar umas com as outras para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social. Onde as pessoas são informadas sobre questões políticas e votam com consciência. Um mundo onde todos trabalham juntos para reduzir o sofrimento humano. A futilidade generalizada é compatível com esse mundo? Não. Eu não vejo como pode ser.
“Se uma nação espera ser ignorante e livre, ela espera o que nunca existiu e nunca existirá… Não há como o povo ser livre sem informação. Onde a imprensa é livre e todo homem capaz de ler, tudo está seguro.”
– Thomas Jefferson
Mas não basta saber ler. É necessário querer ler. Querer se informar. Pelo menos um mínimo, afinal na era da especialização reconheço que é difícil se manter informado sobre o cenário político, mas ainda assim, um mínimo.


OK, todo mundo consome entretenimento banal em algum grau. Mas até que grau é saudável? Eu deveria ter orgulho de vir de um país que é lembrado no mundo por bunda e futebol? Será que é por pura sorte que esse não é o caso na Inglaterra, mesmo considerando a popularidade do futebol por lá?
“[os primeiros defensores da alfabetização universal e da imprensa livre] falharam em levar em conta o apetite quase infinito do ser humano por distrações. (…) Uma sociedade onde a maioria dos membros passam boa parte de seu tempo não no presente, não no aqui e agora ou no futuro próximo, mas em algum outro lugar, nos mundos irrelevantes dos esportes e novelas, da mitologia e da fantasia metafísica, vai ter dificuldade em resistir às artimanhas daqueles que desejam manipulá-la e controlá-la.”
– Aldous Huxley, Brave New World Revisited 
Mas ainda não é apenas uma questão de liberdade da tirania. É uma questão de progresso. Social, moral, filosófico, científico. De desenvolvimento humano.

Um filme assustadoramente profético que trata desse tema é o "Idiocracy". É um filme bobo em muitos aspectos, mas desde que o vi não consigo deixar de mencioná-lo toda vez que critico a cultura da futilidade. No filme, as pessoas mais ignorantes se reproduzem muito mais do que as inteligentes e, após várias gerações, a sociedade se degenera em uma distopia de pessoas idiotizadas que só se interessam por dinheiro, sexo e entretenimento, de preferência violento e se referem a qualquer um que fale de modo "inteligente" (smart-talk) como "veadinho".


O protagonista é um homem "extremamente padrão em toda categoria", que fica em estado de animação suspensa em um experimento militar que dá errado e acorda nesse futuro distópico. No final da história, após ver a tragédia que o mundo se tornou, ele faz um discurso:
“Sabe, houve uma época nesse país em que pessoas inteligentes eram consideradas legais. Bem, talvez não legais, mas elas faziam coisas, tipo construir navios e pirâmides, e até ir à lua! E houve uma época nesse país, há muito tempo, quando ler não era só para veadinhos. E nem escrever. As pessoas escreviam livros, filmes… filmes que tinham histórias, para que você se importasse com que bunda estava lá e por que ela estava peidando. E eu acredito que esse tempo pode voltar!”
OK. Mas qual é a solução?

No caso do funk, será que deveríamos considerar a proibição? Não. Raramente essa é uma boa solução para um problema. Proibir nesse caso seria simplesmente varrer o problema para baixo do tapete. E nesse aspecto eu estou de acordo com o movimento do Freixo porque ele se colocou contra uma proposta de lei que visava proibir o baile funk nas comunidades, e conseguiu a aprovação de outra que garantia a legalidade dessa manifestação artística.

Mas acho que o primeiro passo é reconhecer que existe um problema, e que propostas de solução são bem-vindas. Um exemplo de proposta seria a realização de mais projetos que visem levar cultura à favela. E aqui uso o termo "cultura" propositadamente, embora saiba que serei crucificado.

“cultura
sf (lat cultura)(…)
7 Aplicação do espírito a uma coisa; estudo. 8 Desenvolvimento que, por cuidados assíduos, se dá às faculdades naturais. 9 Desenvolvimento intelectual. 10 Adiantamento, civilização. 11 Apuro, esmero, elegância. 12 V culteranismo. 13 Sociol Sistema de ideias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de padrões de comportamento e atitudes que caracteriza uma determinada sociedade.”
– Michaelis Online

"Cultura" é uma palavra que, como tantas outras, tem sentidos diferentes dependendo do contexto. Na definição teórica usada na sociologia, o funk é, sim, cultura. É parte do conjunto de artefatos, padrões de comportamento e atitudes que caracterizam uma determinada sociedade. Mas no sentido de desenvolvimento intelectual, adiantamento, civilização, apuro, esmero ou elegância, não. Não é. E quando digo que deve ser levada mais cultura às favelas, é no segundo sentido que eu uso a palavra.

Eu sei que a história foi cruel, etc. Mas é isso que devemos fazer? Excluir palavras expressivas do nosso vocabulário toda vez que elas forem usadas em discursos que levam a episódios de opressão, genocídio e outras desgraças morais? Não faz sentido. Existe uma tendência entre algumas pessoas de querer negar esses sentidos da palavra "cultura". Acredito que por medo de que sejam usadas para o mal. Querem manter apenas o sentido teórico da sociologia. Neutro e compatível com o relativismo radical que pregam.

Mas mesmo embora tenham sido mal usadas, essas palavras ainda carregam aspectos positivos. E se as eliminarmos, como poderemos lutar por uma sociedade que valorize mais a cultura no sentido mais nobre da palavra? É por isso que, embora concorde com a o resultado legal do movimento "Funk é cultura", me oponho ao lema. Ao afirmar pura e simplesmente que o funk é cultura, sem dizer mais nada, fica clara para mim uma agenda relativista que acaba tendo como consequência a subvalorização da alta cultura e hipervalorização da baixa. Alta porque promove o desenvolvimento intelectual e a reflexão. Porque expõe as pessoas a novas ideias que não estão presentes na cultura popular. Baixa porque só exalta o que há de mais primitivo no ser humano, colaborando para uma sociedade de sofrimento e mal-estar.

Inclusão ou imperialismo?

Exitem projetos que levam música clássica às favelas. Eu digo que deveriam existir mais projetos desse tipo. Mais projetos que levem a alta cultura e a erudição. Mas qual é a reação da esquerda marxista relativista mais radical? "IMPERIALISMO CULTURAL! A elite branca está impondo seus valores sobre uma minoria! A favela não precisa de cultura, ela já tem cultura, sua própria cultura!". Mas esses valores são como são justamente por causa da exclusão dessa população. Por uma falta de acesso a educação que os torna incapazes de ser mais desenvolvidos. Um abandono que gera valores negativos que são reforçados por uma mídia onipresente (carros de som, cartazes, casas de festa etc) em um círculo vicioso. Um abandono que leva a cultura dessas pessoas a se deteriorar. Onde as pessoas não têm condições de desenvolver sua individualidade porque vivem em uma cultura de massa local que só enfatiza sexo, ostentação e violência.

Ainda assim, ironicamente, a elite, tão preocupada com a tolerância e tão politicamente-correta, toma todas as medidas possíveis para que as favelas continuem excluídas e sem o acesso e exposição à cultura (no segundo sentido) que as classes altas têm. Afinal, o fim da cultura da favela seria uma "perda cultural". Ora, o fim da mutilação genital seria uma perda cultural. O fim dos grupos neo-nazistas seria uma perda cultural. Eu tenho fé no povo brasileiro e no seu poder de assimulação cultural. Somos capazes de melhorar uma cultura sem como consequência perder o que ela tem de bom para oferecer.

Por isso insisto que é importante levarmos a alta cultura às favelas. Não como forma de imperialismo, mas de inclusão. Ora, eu tive acesso a muito mais do que a cultura popular. E mais importante: exposição. Porque só o acesso não compete com a cultura de massa que nos asfixia a todo instante. Então por que os moradores das favelas não deveriam ter o mesmo acesso e exposição?
“O primeiro passo para o sucesso é tomado quando nos recusamos a ser prisioneiros do ambiente onde inicialmente nos encontramos”
– Mark Caine
Tem uma escola pública aqui embaixo da janela da minha casa. Em alguns finais de semana há eventos extra-curriculares. Sabe qual foi o último? Batalha do passinho. De que forma estamos ajudando essas crianças a se diversificar culturalmente? De que forma as estamos dando acesso a culturas alternativas? De que formas as estamos expondo à própria cultura da elite? De nenhuma forma. Nós simplesmente não estamos. Isso pra mim é a definição de exclusão. Educação não é só na sala de aula.

Mas agora que não consegui me segurar e critiquei a esquerda radical, vou criticar a igualmente comum direita radical. Porque é ela que alimenta a paranóia dos relativistas. É por isso que eu sempre repito: Nada é binário. Não é produtivo o debate se polarizar e um grupo alimentar a paranóia do outro. Um fica com medo da de um imperialismo cultural elitista e opressivo, e o outro fica com medo da degradação total da sociedade como consequência de uma política radicalmente relativista que deixa de promover o progresso. Por isso peço encarecidamente que os dois grupos se aquietem. Não digam, por favor, que "funk não é cultura". Isso é simplesmente enganoso, pois em um sentido bem claro e bem definido, funk é sim cultura. Não digam "funk não é música". Isso é simplesmente um argumento idiota de adolescente metaleiro. Mas também não bradem "funk é cultura" por aí porque isso só ajuda a legitimizar a cultura de anti-intelectualismo na qual já vivemos e só nos leva mais rápido para uma distopia de competição sexual, ostentação e violência desenfreada.

Conclusão

Críticas construtivas

Tenho a impressão de que o Brasileiro tem dificuldade especial em lidar com críticas. Parece que o conceito de crítica construtiva não é nem conhecido. Toda crítica é sempre vista como um ataque pessoal e defendida de forma vigorosa e muitas vezes agressivas. É difícil ter discussões construtivas com as pessoas. Mas quero que fique claro que minhas críticas são feitas com o a melhor das intenções: incentivar o pensamento crítico para que possamos mudar e progredir.

Culturas "inferiores"

O funk não é a única manifestação cultural de efeitos sociais questionáveis que é defendida sob o pretexto de tolerância e anti-elitismo. Os ciganos no leste europeu têm quase 10 filhos por mulher, não os colocam em escolas e nem registram seu nascimento em cartório. As crianças desde cedo são colocadas nas ruas para pedir esmola e também acabam roubando. Os imigrantes árabes em muitos países ocidentais passam a mão na bunda das mulheres que passam na rua porque, afinal, fala sério, são todas putas no ocidente. Outros até matam suas esposas em crimes de honra.

Repito: Não é por ser cigano ou por ser árabe per se que alguém deve ser estigmatizado. Pertencer a um grupo nunca deve ser suficiente para definir alguém, a nível individual, como inferior. Mas também não dá para simplesmente fingir que não existe um problema a nível coletivo. É claro, existem problemas em toda sociedade. Mas existem problemas mais sérios nessas comunidades. E precisamos reconhecer isso para que medidas sejam tomadas. Não é racismo. Não é intolerância. A correção política em excesso acaba sendo muito mais danosa porque fecham os olhos para problemas sérios só para evitar essas acusações. Mas em nome do progresso, não devemos abaixar a cabeça: Não. A cultura desses povos não está boa como está. Está sim pior do que a cultura da elite branca ocidental. Mas não estamos mais no século XVI. Nem no século XX. E esse discurso não pode mais justificar barbáries. Estamos no século XXI, e devemos mudar não esse discurso, mas sim as medidas que ele justifica. Estamos no século XXI e o progresso moral não precisa mais se basear em religiões imperialistas. Como diz Sam Harris, devem se basear no racionalismo e, sempre que possível, na ciência.

Ao reconhecer que certas culturas estão em um estágio de desenvolvimento inferior, é responsabilidade das culturas que estão em um estágio mais avançado não exterminá-las, mas ajudá-las. Incluí-las. Precisamos integrar à nossa sociedade o povo que vive nas favelas, os ciganos e os imigrantes. Não observá-los com a frieza e distância de um naturalista inglês na savana africana. Não quando as mulheres em destaque na favela são Valesca Popozuda e Mulher Melancia. Não quando crianças cantam "Lá vem dois irmãozinho de 762; Dando tiro pro alto só pra fazer teste" enquanto dançam como se segurassem armas. Não quando o que mais motiva os homens é comprar cordão de ouro importado e um carrão para "comer cachorras" por aí.
“Quer cordão de ouro importado e um carrão?
Ela dá pra nois que nois é patrão,
Ela dá pra nois que nois é patrão”
– Ela dá pra nois; Mr. Catra
Não quando se divertem cantando "vou largar minha casa e vou morar no cabaré" em um meio onde crianças entram para o tráfico e morrem com 4 tiros na cabeça após crescerem revoltados e sem pai. Muito menos quando toda essa cultura é produto da exclusão social e da omissão do nosso próprio país. Isso sim, pra mim, é elitismo.
“Pobreza não é vergonha mas também não pode ser orgulho”
– Emicida